Evangelho segundo São Marcos
Ver texto do Evangelho segundo São Marcos (Mc) – 2ª revisão de julho 2024
Até Marcos, evangelho era o anúncio oral da salvação realizada em e por Jesus. Os arautos eram as testemunhas oculares, que garantiam a verdade do que era proclamado. No entanto, perante o crescente desaparecimento destas testemunhas, era necessário garantir não só a fidelidade ao que elas tinham anunciado, como contextualizar o que Jesus dissera e fizera no enquadramento da sua vida. Marcos foi o primeiro a fazê-lo, criando o género literário evangelho, chamado assim pela tradição posterior, porque conserva por escrito a proclamação oral da grande boa nova: que, em Jesus, Deus fez-se próximo (1,14s). Mateus e Lucas seguiram o seu exemplo e usaram-no como uma das suas principais fontes.
Autor, lugar e data
A tradição, fundamentada em Pápias de Hierápolis (c. 130 d.C.), atribui a obra a Marcos, um discípulo de segunda geração, ligado a Pedro (1Pd 5,13) e a Paulo (At 12,12; 13,5; Cl 4,10; 2Tm 4,11). Segundo o bispo de Hierápolis, Marcos teria posto por escrito a pregação de Pedro, enquanto secretário e intérprete.
O facto de explicar palavras em aramaico (5,41) e os costumes judaicos (7,3-5) remete, segundo algumas opiniões, a elaboração do evangelho – ou pelo menos a sua difusão – para fora da Palestina. Segundo a tradição, teria sido escrito em Roma, ideia que a análise da obra parece confirmar, pois nela encontramos muitas palavras latinas que o autor não sente necessidade de traduzir (centurião, legião, censo, denário, quadrante), ao contrário das aramaicas. Além disso, Roma estava intimamente relacionada com Pedro e Paulo, tal como Marcos com eles.
A obra teria sido escrita durante a vida de Pedro, que terá morrido entre os anos 64-66, o que implicaria uma data anterior. Para a maioria dos biblistas, no entanto, a composição teria acontecido por volta do ano 70, tendo em conta o cap. 13 que fala em guerras, o que é considerado por alguns como uma referência à guerra judaica e à destruição do templo (70 d.C.); a afirmação: por causa dos eleitos que escolheu, abreviou os dias (13,20) poderá indicar que a guerra acabara. Assim, este evangelho terá sido redigido por volta do ano 70, com base em tradições orais e escritas.
Destinatários
A ligação de Marcos a Pedro (cuja pregação e ministério se desenvolvia sobretudo entre os cristãos de origem judaica) e a Paulo (pregador do evangelho e fundador de comunidades também entre os de origem pagã) faz com que surja como alguém que faz a ponte entre os cristãos das duas proveniências. De facto, em Roma existiam diversas igrejas domésticas, constituídas por discípulos vindos do judaísmo e do paganismo.
Por isso, o facto de o título programático da obra de Marcos (Princípio do Evangelho de Jesus, Cristo, Filho de Deus: 1,1) e de a proclamação do próprio Deus sobre a identidade de Jesus (1,11; 9,7) encontrarem a sua concretização, como profissão de fé, na boca de Pedro, um judeu (Tu és o Cristo: 8,29), e na de um pagão, o centurião romano perante a morte de Jesus (verdadeiramente este homem era Filho de Deus: 15,39), faz pensar numa comunidade constituída por gente com origem no judaísmo da diáspora e no paganismo.
A abertura da comunidade ao mundo pagão é sublinhada quer pela omissão em 6,6b-13 das palavras do paralelo de Mt 10,5b-6 (Não partais para o caminho dos pagãos, nem entreis em cidade dos samaritanos; ide, antes, às ovelhas perdidas da casa de Israel), quer pelo segundo relato da multiplicação dos pães destinada aos pagãos (8,1-10), quer ainda por episódios como o da mulher sirofenícia (7,24-30).
A comunidade de Marcos sofre as dificuldades da perseguição, já não apenas da sinagoga, mas também, depois do incêndio de Roma de que Nero culpou os cristãos, das autoridades do império (situação espelhada em 13,9). Neste sentido, o leitor é confrontado com uma enfática apresentação do caminho sofredor de Jesus, pelo qual necessariamente passam também os seus discípulos, para poder com o centurião descobrir, na cruz, a verdadeira identidade do seu Senhor. Perante a perseguição e o sofrimento, o discípulo é convidado a tomar a sua cruz e a colocar-se atrás de Jesus (8,34), sabendo que, desta forma, chegará com Ele ao dia da ressurreição e do triunfo, pois Deus terá sempre a última palavra. Só assim o discípulo poderá responder com verdade existencial à pergunta de Jesus no início do caminho para Jerusalém: Vós, porém, quem dizeis que Eu sou? (8,29a).
Conteúdo e estrutura
O título do evangelho (1,1) apresenta também a sua finalidade: que os discípulos descubram a verdadeira identidade de Jesus como Messias e Filho de Deus. Trata-se de um «mistério» (a que alguns chamam «segredo messiânico») e a que se chega não apenas pela razão, mas sobretudo pelo seguimento adequado da pessoa de Jesus. Por isso, Ele recusa a revelação que de si fazem os espíritos impuros (1,25.34) e mesmo a apressada profissão de fé de Pedro, que proclama um messianismo com critérios muito mundanos (8,29s), como se percebe pelo contexto imediatamente posterior (8,31-34). Para descobrir a verdadeira identidade de Jesus, o discípulo é chamado a colocar-se atrás dele (1,16.20; 8,32.34), a acompanhá-lo na sua missão e revelação na Galileia e arredores (1,14-8,26), fazendo do dia típico do seu Senhor o esquema diário da sua própria vida (1,21-38), mas, sobretudo, a percorrer o mesmo caminho de Jesus (8,34, cf. 10,46.52). Trata-se do caminho para Jerusalém (8,27-10,52), onde o Filho do Homem sofrerá e dará a sua vida, mas também onde Deus o ressuscitará (14,1-16,8). Ao contrário das mulheres, que deixaram que o medo fizesse emudecer a alegria da ressurreição (16,8: primeira conclusão), os discípulos, a quem o livro se destina, são desafiados a jamais permitir que os respeitos humanos ou o medo da cruz calem a alegria da salvação de Deus operada em Jesus (16,9-20: segunda conclusão). As diferentes personagens, que pontuam o andamento da narração, são modelos de discipulado, que o leitor é convidado a imitar ou rejeitar, mas, sobretudo, a perceber como todos os modelos são insuficientes e muitas vezes claudicam, como no caso dos próprios Doze. Por isso, apenas Jesus é o modelo definitivo e colocar-se atrás dele o único caminho que leva à ressurreição.
Assim, depois da introdução, que engloba o título (1,1), a preparação e a vinda de Jesus (1,2-13), o evangelho aparece estruturado fundamentalmente em duas grandes partes, a última das quais inclui a conclusão. A segunda conclusão, chamada «conclusão longa», falta nos dois grandes códices do séc. IV, o Vaticano e o Sinaítico, e ainda no minúsculo 304 do séc. XII, na versão siríaca sinaítica e noutros, mas aparece em grande parte dos manuscritos, entre eles o Alexandrino do séc. V, pelo que a sua canonicidade não foi posta em causa nem por S. Jerónimo, que a incluiu na Vulgata, nem pelo Concílio de Trento (cf. 16,9 nota).
Introdução (1,1-13)
Título (1,1)
Vinda de Jesus (1,2-13)
I. A missão de Jesus na Galileia e arredores (1,14-8,26)
II. O «caminho» para a morte e ressurreição (8,27-16,8)
- A. O caminho (8,27-10,52)
- B. Em Jerusalém (11,1-13,37)
- C. Paixão, morte e ressurreição (14,1-16,8)
Segunda conclusão (16,9-20)
Capítulos
Mc 1 Mc 2 Mc 3 Mc 4 Mc 5 Mc 6 Mc 7 Mc 8 Mc 9 Mc 10 Mc 11 Mc 12 Mc 13 Mc 14 Mc 15 Mc 16