Evangelho Evangelhos:

From Biblia: Os Quatro Evangelhos e os Salmos
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I. Evangelho e evangelhos

1. Jesus e a comunidade pré-pascal

Os quatro livros a que chamamos evangelho resultam de um longo processo de formação que tem a sua origem na vida, morte e ressurreição de Jesus. Ao contrário do que era habitual no judaísmo, é Jesus quem escolhe os discípulos que, vivendo permanentemente com Ele, escutam a sua palavra e são testemunhas dos seus gestos. Ainda em vida, envia-os a pregar (Mc 6,7-13; Mt 10,5-15; Lc 9,1-6; 10,1-12), o que implica a constituição de uma tradição sobre as palavras do Mestre. A fidelidade a esta mensagem estava garantida pela memorização, característica essencial do sistema educativo judaico, ao ponto de S. Jerónimo se admirar com a capacidade dos judeus de reproduzir de memória não só as listas de nomes do livro das Crónicas, como a Torá e os Profetas. Para isso empregavam várias técnicas, que Jesus, tal como os mestres do seu tempo, conhecia e utilizava: não faz definições teológicas diretas, mas usa as metáforas, os paralelismos sinonímicos e antitéticos, conta histórias – parábolas – que partem da experiência quotidiana ou conhecida pelos interlocutores, pelas quais os faz chegar a conclusões e realidades que desconhecem, usa imagens fortes, que fazem gravar a mensagem na memória de quem escuta, assim como assonâncias, aliterações, ritmos e rimas, etc.. Por outro lado, as palavras de Jesus estavam intimamente ligadas à sua vida e às suas ações, pelo que era impossível anunciar aquelas sem se referir estas. E se, para os judeus, a Torá constituía o alicerce da construção da vida e do quotidiano, para os discípulos de Jesus a vida edifica-se tendo como fundação a palavra do Mestre (Mt 7,24-27; Lc 6,47-49), de tal forma que, se para os judeus era possível ter mais do que um mestre, aos discípulos é exigido não só que tenham em Jesus o Mestre exclusivo, como eles próprios jamais o pretendam ser (Mt 23,8).

2. A Páscoa redimensiona as palavras e as ações de Jesus

Depois da ressurreição, os discípulos têm não só razões acrescidas para conservar com fidelidade as palavras e as ações de Jesus, como uma nova perspetiva para as entender e interpretar: Por isso, quando ressuscitou dos mortos, os seus discípulos recordaram-se de que dissera isto e acreditaram na Escritura e na palavra dita por Jesus (Jo 2,22). À luz da Páscoa, a comunidade primitiva relê a vida de Jesus, de modo particular a sua morte e ressurreição, descobrindo na Escritura – pela exegese deráchica – que já tudo tinha sido anunciado na Lei e nos Profetas (Lc 24,25-27). A experiência da ressurreição, com a alegria que dela brota, deu origem ao anúncio do evangelho – do grego eu- (bem) e angéllō (anunciar). E a boa notícia é que, em Jesus, Deus visitou a humanidade para a resgatar do poder das trevas e da morte e fazê-la participante da sua própria vida, a eternidade.


3. O hoje do evangelho

Diversos fatores sócio-religiosos que revestiam e enquadravam o anúncio desta boa notícia exigiam a adaptação e atualização da tradição recebida de Jesus: a tradução do aramaico, língua falada por Jesus e pelos discípulos, para o grego, língua franca do Mediterrâneo; a inculturação, no ambiente das grandes cidades do império, de uma mensagem surgida na ruralidade da Palestina; a vida das próprias comunidades cristãs, que releem a palavra de Jesus, atualizando-a de forma a iluminar as situações vividas quer a nível interno (catequese, culto, estruturação da comunidade, relações entre os seus membros, etc.), quer externo (pregação missionária, controvérsias com o ambiente judaico e pagão, etc.). Tudo isto leva a reler a tradição recebida para poder enquadrar a situação presente. Assim, por exemplo, a parábola da ovelha perdida que, segundo Lc 15,4-7, é dirigida por Jesus aos doutores da lei e fariseus, que murmuram por Ele comer com publicanos e pecadores, em Mt 18,12s é dirigida aos discípulos (cf. 18,1) como releitura atualizante da palavra de Jesus, que ilumina o comportamento que devem ter para com os membros mais frágeis da comunidade (cf. 18,6.10.14).


4. Do evangelho proclamado ao escrito

Estas diferentes necessidades deram origem ao aparecimento de correspondentes perícopes isoladas – ainda percetíveis nos textos evangélicos que temos, precisamente pela ligação vaga e sem nexo entre algumas delas – que, embora transmitidas oralmente numa primeira fase, começaram a circular por escrito, tendo algumas dado origem a pequenos blocos literários unitários, que passaram posteriormente como tal para o texto evangélico: controvérsias (Mc 2,1-3,6 par.), parábolas (Mc 4,1-34 par.), milagres (Mc 4,35-5,43 par.). O desaparecimento progressivo das testemunhas oculares que acompanharam Jesus desde o batismo de João até ao dia em que foi arrebatado para o Alto (At 1,22), e que conservavam a fidelidade à verdade da vida e mensagem de Jesus, faz com que surja a necessidade de escrever o que antes era proclamação apenas oral – e mantendo o seu estilo –, como forma de garantir a não adulteração do testemunho recebido de quem viu e testemunhou (Jo 19,35). Para além desta finalidade, a redação dos evangelhos teve também como objetivo fortalecer e melhor fundamentar a fé das comunidades cristãs, apresentar a vida de Jesus como o paradigma para entender a sua mensagem – não se trata da adesão a uma doutrina, mas a uma pessoa, Jesus – e oferecer uma visão holística do mistério de Cristo, pois as perícopes isoladas ou em bloco apenas sublinhavam um aspeto, o que podia deturpar a verdade cristológica: a narrativa isolada dos milagres sublinhava apenas o seu poder, a coleção de ditos apresentava-o apenas como Mestre, etc.. Assim, como afirma o Concílio Vaticano II, os evangelistas recolhem, organizam e transmitem esta tradição evangélica, mas fazem-no como verdadeiros autores: selecionam os dados da tradição oral e escrita (cf. Lc 1,1-4; Jo 20,30s; 21,25), sintetizam-nos, releem a tradição à luz da situação vital da comunidade a quem destinam o seu escrito. Conservam, porém, o carácter de pregação, visto que a sua preocupação não é satisfazer curiosidades históricas, mas oferecer à comunidade os fundamentos da sua fé e vida cristã. Neste sentido, os evangelhos são narrações teológicas. Como narrativa, introduzem os ditos de Jesus no contexto da sua vida, o que significa que apenas uma leitura contínua, que identifique as características e elementos da trama do relato, garante fidelidade à verdade da obra. Mas, ao mesmo tempo, na continuidade da tradição historiográfica judaica que descobre a ação de Deus na história e a lê à luz da Aliança, os evangelhos olham para a história de Jesus, descobrindo nela a intervenção salvífica de Deus e o cumprimento do AT. Ou seja, os evangelhos narram a vida de Jesus com uma trama que desemboca na cruz, mas são concomitantemente uma confissão de fé sobre a presença atual do Senhor que ressuscitou e que, presente na sua comunidade, continua a dirigir-lhe a sua palavra, como é bem sublinhado nos relatos das aparições pascais. Desta forma, as narrativas evangélicas têm três preocupações simultâneas: a fidelidade às palavras e feitos de Jesus; a sua atualização de forma a iluminar a vida das comunidades; a apresentação de Jesus como o cumprimento do AT, da história da salvação.


5. Um único evangelho em quatro formas diferentes

O evangelho é único: a boa nova de Jesus Cristo (Mc 1,1). Ele é não só o anunciador, como o conteúdo da boa notícia. Por isso, primordialmente, evangelho era o conteúdo da pregação oral das testemunhas da morte e ressurreição do Senhor e, consequentemente, da comunidade primitiva – um querigma, anúncio). Pelas razões indicadas, este anúncio ganha forma literária em quatro livros canónicos, que expressam, cada um de acordo com as necessidades das comunidades a que se destinam e a perspetiva própria de quem o redigiu, a única boa notícia de Jesus. Mateus, Marcos e Lucas têm grandes semelhanças entre si, o que levou os estudiosos a chamarem-lhe sinópticos – de synoráō, olhar conjuntamente, ver de forma conjunta. De facto, os seus textos são de tal natureza que é possível colocá-los em colunas paralelas e perceber com rapidez as suas semelhanças e diferenças. Houve, logo nos inícios, quem se perguntasse sobre a necessidade de haver quatro versões diferentes do mesmo evangelho de Jesus, surgindo muito cedo a tentação de elaborar uma síntese de todos. A Igreja, porém, nunca aceitou perder a riqueza que quatro perspetivas diferentes sobre a mesma realidade permitem. Por isso as manteve, inclusivamente na liturgia, entendendo que nenhuma perspetiva esgota o mistério de Jesus. Mas como se explica esta relação de estrutura e conteúdos – e também as diferenças – entre estes três evangelhos? S. Agostinho aceitou a ordem canónica e considerou Mt o mais antigo dos três; Mc seria um resumo de Mt, e Lc uma síntese de ambos. Esta ideia subsistiu até ao séc. XIX, o que fez com que Mc fosse pouco considerado e estivesse mesmo quase ausente da liturgia. No séc. XX, porém, foi ganhando consistência a tese de que Mc é a obra mais antiga, caracterizada por uma reflexão cristológica ainda incipiente e usada de forma independente por Mt e Lc, quer no que respeita ao conteúdo quer à estrutura. Ainda segundo esta teoria, que se mantém – embora com variantes – nos dias de hoje, o material discursivo comum a Mt e Lc e que não se encontra em Mc, teria a sua origem num hipotético documento Q – inicial do alemão Quelle, que significa fonte. O material restante que não corresponde nem a Mc nem ao documento Q é exclusivo, recebido por Mt e Lc de fontes próprias. O evangelho segundo S. João revela uma cristologia mais elaborada – e, portanto, mais tardia –, fruto de uma tradição possivelmente independente dos sinópticos, embora muitos defendam que Jo conhece os três primeiros evangelhos. Nenhum destes textos revela o nome do autor; apenas o quarto evangelho apresenta o Discípulo Amado – expressão que muitos pensam referir-se a João, irmão de Tiago e filho de Zebedeu – como aquele que o escreveu ou fez escrever (cf. Jo 21,20.24). Os títulos pelos quais distinguimos cada evangelho parecem ter sido acrescentados, de acordo com a tradição oral, por ocasião da elaboração e reunião dos quatro livros numa única coleção, nos inícios do séc. II, como forma de os distinguir.