Critérios de tradução:
II. Os critérios de tradução da presente edição
Esta tradução dos evangelhos procura respeitar um conjunto de pressupostos metodológicos a seguir elencados. Os critérios, já genericamente referidos na introdução a esta edição, são aqueles respeitados numa qualquer tradução competente: procurar uma tradução que resulte de uma exegese cuidada dos textos originais e seja fiel ao estilo, época e contexto histórico-social do original, sem cair na excessiva literalidade. No caso do NT porém, há que ter em conta não só as particularidades e especificidades da língua grega e da cultura helenística, mas também o enquadramento judaico dos textos. Para além disso, tendo em conta o objetivo específico desta edição, assumindo-se como um instrumento ao serviço da liturgia, procura-se que o texto final seja fluído e inteligível ao nível da oralidade[1]; por consequência, procurou evitar-se expressões demasiado formais, herméticas, ou desadequadas ao próprio estilo e contexto do NT, para além, obviamente, das cacofonias.
Para além destes pressupostos gerais, a Subcomissão coordenadora da tradução do NT procurou estabelecer, ao longo da revisão dos textos entregues pelos diversos tradutores, um conjunto de critérios que pudesse dar uma coerência interna ao texto português, para assim se fazer justiça ao original grego. Este trabalho é particularmente relevante quando se apresenta uma tradução dos evangelhos, em particular porque os sinópticos (Mt, Mc e Lc), pela própria natureza e génese da sua composição, partilham naturalmente um léxico e um conjunto de fórmulas que devem formar um todo coerente, especialmente tendo em conta a sua proclamação. Nesse sentido, todos os textos sinópticos foram revistos numa tabela sinóptica, procurando convergir e harmonizar tudo aquilo que é comum aos três, incluindo naturalmente as passagens que são literalmente iguais. Este trabalho refletiu-se na revisão final de Jo, que assumiu grande parte das decisões tomadas nesta revisão sinóptica, nomeadamente ao nível lexical.
O texto grego seguido foi o da edição de referência de Nestle-Aland[2]. Quanto aos paralelos apresentados ao longo do texto, seguiu-se a mais sucinta versão da Neovulgata, tal como impressa na edição bilíngue de Nestle-Aland[3].
Elencam-se de seguida, de forma mais pormenorizada, os critérios por que se guia esta edição dos evangelhos:
a) Quanto a repetições que poderiam ser consideradas supérfluas em português, por fazerem parte do estilo do autor, procurou-se mantê-las o mais possível. Por exemplo, a fórmula apokritheìs dè ho Iēsoûs eîpen autoîs[4] (ex. Mt 21,21) é traduzida por respondendo – ou em resposta – Jesus disse-lhes, e não simplesmente Jesus disse-lhes ou Jesus respondeu-lhes.
b) No caso de repetições sistemáticas no texto grego, como o uso da conjunção kaí (e) em Mc ou do advérbio oûn (então) em Jo, apesar de serem específicos do estilo de cada evangelista, e tendo em conta o próprio processo de edição do texto antigo – a ausência de sinais de pontuação fazia de algumas destas partículas «pontuação escrita» –, optou-se por eliminar algumas destas repetições, ou por variar um pouco a sua tradução (ex.: oûn: então, ora, assim, etc.), para evitar, na proclamação e na leitura, tornar o texto demasiado marcado a este nível.
c) Procurou-se limitar a tradução de cada lexema, quando possível, a uma só opção no português. Exemplos:
1) paradídōmi é traduzido por entregar, mesmo que o contexto associado seja o da traição, pois a etimologia do verbo grego fala por si: para-, em direção (a algo), e dídōmi, dar, entregar (ex.: Mt 26,14-19; Mc 14,10; Lc 22,3-6);
2) a expressão deî é sempre traduzida por é necessário, de modo a expressar uma certa obrigação ético-religiosa que advém do conhecimento da vontade de Deus (ex.: Lc 13,14; 22,7) e, sobretudo, a necessidade teológica, ou seja, algo que é imprescindível acontecer para que o plano salvífico-escatológico de Deus se realize (ex.: Mt 17,10ss; Mc 13,10; Lc 17,25; Jo 3,7.14; 20,9).
Noutros casos, favoreceu-se uma determinada tradução – e só se varia em casos muito particulares – definido um critério. Por exemplo, o verbo akoúō será traduzido sempre como ouvir, exceto em contexto particularmente solene, em que se pode traduzir por escutar (ex., quando Deus fala ao homem, Mt 17,5). Naturalmente, em alguns termos este critério é impossível, e aí optou-se por um leque mais alargado de sentidos. Por exemplo, o verbo afíēmi tem traduções tão díspares como deixar, despedir, dar, perdoar ou desprezar, assim como egeírō, traduzido por erguer(-se), levantar, acordar ou ressuscitar (quando o sujeito é Jesus).
d) Manteve-se a diversidade lexical quando ela está presente no grego. Exemplos:
1) vários verbos exprimem admiração, tais como exístēmi, thaumázō, thambéō; houve a preocupação de, na respetiva tradução, respeitar a sua variedade e diversidade etimológica: espantar-se, admirar-se, ficar estupefacto, evitando assim traduzi-los por um só verbo em português e procurando ser coerentes com a correspondência estabelecida;
2) mnēmeîon é traduzido por sepulcro e táphos por túmulo;
3) dada a diferente sintaxe portuguesa em relação à grega, foi forçoso por vezes assumir um só significado para dois vocábulos gregos distintos. Por exemplo: procura-se distinguir laléō (falar) de légō (dizer), exceto quando laléō tem um uso transitivo, pois o verbo falar, em português europeu, não é comummente assumido como transitivo (ex.: Mt. 13, 34: Jesus disse [elálēsen] todas estas coisas e não Jesus falou todas estas coisas).
e) Quando a tradução se desvia muito da literalidade assinalou-se com uma nota (lit.), mas em geral procurou-se manter o «desenho etimológico» da expressão. Exemplos:
1) a expressão idiomática kakôs ékhein (cf. Mt 8,16), lit. ter de forma má, traduz-se por ter algum mal;
2) expressões idiomáticas tais como kaléseis tò ónoma autoû Iōánnēn (Lc. 1,13), lit. chamarás o nome dele João, é traduzida por chamá-lo-ás com o nome João, e não simplesmente por chamá-lo-ás João, preservando assim o grego ónoma (nome).
f) Evitou-se a tradução de uma só palavra em perífrase (um só termo traduzido por várias palavras); a não ser que o étimo grego sugira algo que uma só forma portuguesa não pode exprimir. Exemplos:
1) splankhnízomai é traduzido por compadecer-se profundamente e não só compadecer-se, pois o verbo deriva de splánkhon (entranhas, vísceras) e sugere assim uma compaixão profunda (cf. Mc 1,41);
2) grammateús pode ser traduzido por escriba ou secretário, mas nos LXX traduz o hebraico sôfer (e o aramaico sofrá’) que, a partir de 2Esd e 1Cr, indica o pregador da Torá e, no tempo do NT, os rabis, profundos conhecedores não só da Escritura, mas também da tradição oral e da sua interpretação; daí que a tradução seja doutor da lei.
g) Expressões e fórmulas que se repetem em grego, são, por princípio, traduzidas sempre da mesma forma. Exemplos:
1) lypéō sphódra por ficar profundamente triste;
2) ókhlos polýs por numerosa multidão;
3) ho ponērós por o Maligno, visto que – embora, no AT, o adjetivo em sentido moral caracterize o que se opõe à vontade e ação de Deus e, nos evangelhos, à pregação de Jesus – o uso substantivado no masculino singular refere-se ao adversário absoluto de Deus, o Diabo: ho ponērós em Mt 13,19 corresponde a ho satanâs no paralelo de Mc 4,15 e a ho diábolos no de Lc 8,12.
h) Procurou-se manter os paralelismos semânticos e jogos etimológicos entre palavras. Exemplo: phobéō, por ser formado a partir de phóbos (medo), é traduzido por ter medo em vez de temer, pois medo e temer não têm em português uma relação etimológica.
i) Tentou-se respeitar ao máximo o sistema verbal grego, em particular a sua noção de aspecto:
1) Quanto aos muitos «presentes históricos», optou-se por traduzi-los pelo nosso perfeito. Exemplo: então os discípulos, aproximando-se, disseram-lhe (Mt 15,12) e não dizem-lhe (apesar do presente légousin).
2) Quanto aos vários particípios do texto bíblico, evitou-se convertê-los numa oração principal ou coordenada, optando antes por uma estrutura com o gerúndio, infinitivo ou oração subordinada. Exemplo: ekteínas tḕn kheîra hḗpsato autoû légōn (Mt 8,3), não será traduzido por estendeu a mão, tocou-lhe e disse, mas por estendendo (ou ao estender) a mão, tocou-lhe, dizendo (Mt 8,3).
j) Sempre que possível, conservaram-se a ordem e a disposição dos elementos dentro do período grego, mantendo a organização geral das estruturas. Exemplo: eîpen ho Iēsoûs (Mt 26,55) é traduzido disse Jesus e não Jesus disse, pois a primeira opção é também natural;
l) No caso de algumas traduções já consagradas, decidiu-se manter a longa tradição existente, nomeadamente em relação à Vulgata, não só pelo peso que tem no âmbito litúrgico e pela profundidade teológica que subjaz às suas escolhas, mas também porque esta procura uma uniformidade lexical entre o hebraico do AT e do grego do NT. Exemplos:
1) mantêm-se os termos hebraicos transliterados em grego, como amḗn;
2) ángelos, de angélō, (anunciar), é traduzido por anjo e não mensageiro (o latim traduz por angelus, «alatinizando» a forma, e não por nuntius);
3) hamartía, de hamartánō (falhar o alvo, enganar-se, falhar), poderia ter diversas traduções (erro, falha, engano, culpa), mas no seu contexto judaico tem o sentido da tradução consagrada pelo latim peccatum, pecado (de peccare: enganar-se, dar um passo em falso). De facto, hamartía traduz, nos LXX (onde é sinónimo de hamártēma), uma série de palavras hebraicas – entre elas, hattā’t e hattā’ā (erro do alvo), mas também ‘āwōn (maldade, crime), pecha‘ (rebeldia), ’āchām (culpa, delito), rācha‘ (culpa, transgressão, impiedade), rā‘āh (maldade), holî (sofrimento, doença), chevût (cativeiro), mahachābāh (pensamento), ‘alîlāh (conduta vergonhosa), qétzef (ira) – que, embora na sua maioria tenham origem profana, adquiriram metaforicamente o mesmo significado religioso que têm no NT: quase sempre uma transgressão contra Deus, em que está presente a responsabilidade pessoal, mas também uma força que afasta dele o ser humano.
m) Em relação a termos de difícil tradução, chegou-se a uma decisão final somente após ponderar os diversos argumentos linguísticos, históricos e teológicos, muitas vezes concorrentes. Exemplos:
1) metánoia (Mt 3,8, Mc 1,4, Lc. 3,3) tem várias traduções e interpretações possíveis, variando entre arrependimento, penitência (cf. a comum tradução latina paenitentia, do verbo paenitet, arrepender-se) – seguindo um dos sentidos já presentes no grego clássico (meta-, para além de, depois, e noéō, pensar, ou seja, pensar demasiado tarde, arrepender-se) – e conversão (do latim conversio [mentis]), fazendo apelo a um virar-se para Cristo. A ambiguidade – até porque o termo traduz nos LXX dois termos hebraicos distintos (chûb, que significa voltar-se, no sentido de afastar-se para regressar ao ponto de partida, e niham, que indica sentir remorso) – levou a optar por conversão, por indicar não apenas o arrependimento, mas também a sua consequência existencial: a mudança da maneira de pensar e, consequentemente, de agir e viver;
2) dýnamis (lit. poder), cuja tradição de tradução em português varia muito entre milagre, portento, maravilha, etc., é traduzido por ação poderosa (cf. Mc 6,5), respeitando assim o critério da alínea h (a relação entre dýnamis e dýnamai) e o sentido do grego, que acentua o poder de quem realiza a ação (enquanto que milagre acentua o ato de ver tal ação). Por isso, os evangelhos, no contexto do costume rabínico, utilizam dýnamis como circunlóquio para se referir ao nome de Deus (cf. Mc 14,62; Mt 26,64);
3) sēmeîon é traduzido, não por milagre, mas por sinal, por respeito pelo seu sentido literal e significado teológico, especialmente em Jo: sinal do poder e da missão de Jesus; por exemplo, na transformação da água em vinho no contexto de uma boda (Jo 2,1-12), como anúncio da chegada dos tempos messiânicos (Is 25,6).
n) Em relação a alguns termos particularmente ambíguos em grego, procurou-se refletir conjuntamente, caso a caso, sobre qual a melhor tradução. Exemplo: psykhḗ, que traduz o hebraico néfech (garganta, respiração e, consequentemente, vigor vital ou a própria vida), tem dois sentidos: alma, no sentido de princípio vital, ou vida; nuns contextos traduzir-se-á por alma (cf. Mt 10,28), noutros por vida (cf. Lc 17,33), embora muitas vezes tenha um sentido metonímico, referindo-se ao homem enquanto ser vivo (cf. Mc 3,4par.; Lc 6,9).
o) Em casos em que o «eco» semântico da palavra já é pouco natural em português, tentou-se que, no contexto, a palavra adquirisse o sentido teológico específico do NT. Exemplo: scándalon, pedra de tropeço, armadilha, escândalo, terá já pouca ressonância no português corrente, em que escândalo está mais conotado com expressões tais como fazer um escândalo; por isso, o verbo skandalízō é traduzido por ser motivo de escândalo e não por escandalizar (cf. Lc. 17,2), alertando assim para o significado específico de escândalo no NT, ou seja, aquilo que pode levar ao erro, ao pecado, uma armadilha em que se pode cair.
Sabendo que nenhuma tradução esgota o sentido tão antigo, mas sempre novo da Palavra, que não é letra morta, mas Palavra viva e eficaz (Heb 4,12), entregamos o resultado deste trabalho ao leitor, com a esperança de que, conduzido pelo mesmo Espírito da verdade que inspirou os textos sagrados, possa chegar à verdade toda (Jo 16,13).
A Subcomissão do Novo Testamento
Mário José Rodrigues de Sousa (moderador)
Pedro Braga Falcão
José Carlos da Silva Carvalho
- ↑ Cf. os critérios elencados na instrução Liturgiam Authenticam (2008).
- ↑ B. Aland , K. Aland, J. Karavidopoulos, C. M. Martini e B. M. Metzger (eds.), Novum Testamentum Graece, begründet von Eberhard und Erwin Nestle, Stuttgart, Deutsche Bibelgesellschaft, 2002, 28ª edição.
- ↑ Novum Testamentum Graece et Latine, Stuttgart, Deutsche Bibelgesellschaft, 2004, 3ª edição. A edição latina corresponde a Nova Vulgata, Editio typica altera, Libreria Editrice Vaticana, 1996.
- ↑ O grego foi transliterado segundo os critérios normalmente usados nos meios académicos, preservando a distinção entre vogais necessariamente longas (ω, η > ō, ē) das breves (ο, ε > o, e), e mantendo os acentos originais (´ ` ^), para facilitar a pronúncia. Com esse objetivo optou-se também por transliterações que auxiliem a leitura do grego a quem não domine a língua: assim, por exemplo, a transliteração da letra chi (χ) por kh, para evitar a pronúncia ch.