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− | 1 Prólogo: 1,1-4 – <nowiki><span style=”color:red”><sup>1</sup></span></nowiki>Dado que muitos procuraram compor uma narração acerca dos factos que entre nós se completaram, <nowiki><span style=”color:red”><sup>2</sup></span></nowiki>como no-los transmitiram os que, desde o princípio, foram testemunhas oculares e servidores da palavra, <nowiki><span style=”color:red”><sup>3</sup></span></nowiki>entendi por bem, também eu, que desde o início averiguei atentamente todas as coisas, escrever-tos, de modo ordenado, caríssimo Teófilo, <nowiki><span style=”color:red”><sup>4</sup></span></nowiki>para que reconheças a solidez das palavras com que foste instruído<ref name="ftn0">1-4: À boa maneira das obras historiográficas da época, Lc começa a sua com um prólogo, em estilo clássico, em que assinala os três momentos da formação dos evangelhos (factos, transmissão e redação) e a sua finalidade (reconhecer a solidez da doutrina); refere o personagem a quem a obra é dedicada (Teófilo em At 1,1); e destaca o trabalho de investigação e composição que levou a cabo.</ref>.
| + | <center><span style="color:red">INTRODUÇÃO</span></center> |
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− | <center>I</center>
| + | O evangelho de Lucas é o terceiro, na ordem canónica, e o primeiro, na extensão em número de versículos. Tem a sua continuidade no livro dos Atos dos Apóstolos, com o qual constitui uma unidade literária e temática, à boa maneira da historiografia da época. As duas partes começam de modo semelhante (cf. Lc 1,1-4 e At 1,1-3), apresentam muitas palavras, expressões e temas comuns (por exemplo, a conclusão de Lc 24,44-52 é retomada em At 1,4-11), o que nos permite falar de uma certa homogeneidade de linguagem, temática e pensamento. |
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− | <center>O SALVADOR ENTRA NA HISTÓRIA (1,5-2,52)</center>
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| + | '''Autor, data, lugar e destinatários''' |
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− | Anúncio do nascimento de João Batista (Mt 1,20; 2,1)<ref name="ftn1">O anúncio do nascimento de João dá início a uma secção designada ''narrativas da infância'' (1,5-2,52), de sabor semita. Apesar da sua elaboração teológica, regista alguma preocupação histórica, como se deduz da referência aos diversos personagens: Herodes, Zacarias e Isabel.</ref> – <nowiki><span style=”color:red”><sup>5</sup></span></nowiki>Nos dias de Herodes, rei da Judeia, havia um sacerdote de nome Zacarias, do grupo de Abias, cuja mulher era das descendentes de Aarão e o seu nome era Isabel. <nowiki><span style=”color:red”><sup>6</sup></span></nowiki>Eram ambos justos diante de Deus, procedendo irrepreensivelmente segundo todos os mandamentos e preceitos do Senhor. <nowiki><span style=”color:red”><sup>7</sup></span></nowiki>Não tinham filhos<ref name="ftn2">A esterilidade era um estigma social e religioso. Sinal de vergonha (Gn 30,23; 1Sm 1,10) ou de castigo (Lv 20,21; 2Sm 6,23), fazia sofrer o casal e sobretudo a mulher.</ref>, uma vez que Isabel era estéril e ambos eram de idade avançada<ref name="ftn3">Lit.: ''ambos estavam avançados nos seus dias''.</ref>.
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− | <nowiki><span style=”color:red”><sup>8</sup></span></nowiki>E aconteceu que, quando ele exercia o sacerdócio diante de Deus<ref name="ftn4">Cada classe prestava serviço cultual, no Templo de Jerusalém, durante uma semana (1Cr 24,19; 2Cr 23,8). A classe de Abias era a oitava de um conjunto de vinte e quatro (1Cr 24,10).</ref>, na ordem do seu grupo, <nowiki><span </nowiki><nowiki>style=”color:red”><sup>9</sup></span></nowiki>segundo o costume sacerdotal de oferecer incenso, coube-lhe em sorte entrar no santuário do Senhor. <nowiki><span style=”color:red”><sup>10</sup></span></nowiki>E toda a multidão do povo estava fora, a rezar, à hora da oferta do incenso. <nowiki><span style=”color:red”><sup>11</sup></span></nowiki>Apareceu-lhe, então, um anjo do Senhor, de pé, à direita do altar do incenso. <nowiki><span style=”color:red”><sup>12</sup></span></nowiki>Ao vê-lo, Zacarias ficou perturbado e o medo apoderou-se dele<ref name="ftn5">Lit.: ''caiu sobre ele''.</ref>, <nowiki><span style=”color:red”><sup>13</sup></span></nowiki>mas disse-lhe o anjo: «Não tenhas medo, Zacarias, porque a tua súplica foi ouvida. A tua mulher, Isabel, gerar-te-á um filho e chamá-lo-ás com o nome João. <nowiki><span style=”color:red”><sup>14</sup></span></nowiki>Terás alegria e júbilo<ref name="ftn6">Lit: ''existirá alegria para ti e júbilo''. Alegria e júbilo são os sinais da era messiânica (Is 12,6; 25,9). Este vocabulário é muito frequente em Lc 1-2 (1,28.44.47; 2,11).</ref> e muitos se alegrarão com o seu nascimento; <nowiki><span style=”color:red”><sup>15</sup></span></nowiki>pois será grande diante do Senhor. Jamais beberá vinho ou bebida embriagante<ref name="ftn7">O texto remete para a consagração dos nazireus (Nm 6,3s).</ref>, e ficará cheio do Espírito Santo já desde o seio de sua mãe. <nowiki><span style=”color:red”><sup>16</sup></span></nowiki>Fará voltar muitos dos filhos de Israel para o Senhor, seu Deus. <nowiki><span style=”color:red”><sup>17</sup></span></nowiki>E ele próprio irá à sua frente no espírito e no poder de Elias<ref name="ftn8">O que se diz acerca de João evoca Sir 48,10; Ml 2,6; 3,1.23-24, assim como alguns textos da literatura apócrifa que falam do regresso de Elias antes da vinda do dia do Senhor.</ref>, ''para fazer voltar o coração dos pais para os filhos'' e os desobedientes à prudência dos justos, a fim de dispor para o Senhor um povo bem preparado».
| + | Tendo em conta os dados do próprio texto e as informações do séc. II de Ireneu de Lião (''Adv.Haer.'' III,1.1), é de crer que o autor seja mesmo Lucas, ''o caríssimo médico'' (Cl 4,14), discípulo de Paulo, um cristão da segunda geração (70-100), que não foi testemunha ocular de Jesus (cf. Lc 1,1-4). |
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− | <nowiki><span style=”color:red”><sup>18</sup></span></nowiki>Zacarias disse ao anjo: «Como virei a conhecer isso? Eu estou velho e a minha mulher é de idade avançada»<ref name="ftn9">Lit.: ''está avançada nos seus dias''.</ref>. <nowiki><span style=”color:red”><sup>19</sup></span></nowiki>E, respondendo, o anjo disse-lhe:
| + | Este evangelho foi provavelmente escrito pela década de 80, talvez em Antioquia da Síria. Para a sua composição, o autor apoiou-se no Evangelho segundo S. Marcos e na hipotética ''Quelle'' (''fonte'' de ditos de Jesus, usada também por Mateus), assim como em fontes próprias da tradição escrita e oral (cf. 1-2; 7,1-17; 7,36-50; 10,29-37; 15,11-32; 19,1-10; 24,13-35), trabalhando-as no que respeita à ordem, ao vocabulário e ao estilo. |
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− | «Eu sou Gabriel<ref name="ftn10">Gabriel é o mensageiro das boas notícias de Deus, aquele que anuncia o tempo da salvação (Dn 8,16-17; 9,21-27).</ref>, aquele que está diante de Deus, e fui enviado para te falar e te anunciar esta boa nova<ref name="ftn11">Lit.: ''para anunciar como boa nova'' (''euangelísasthai'') ''estas coisas''.</ref>. <nowiki><span style=”color:red”><sup>20</sup></span></nowiki>E eis que ficarás mudo e não poderás falar até ao dia em que isto acontecer, porque não acreditaste nas minhas palavras, que se cumprirão a seu tempo».
| + | Tudo leva a crer que tenha sido destinado a cristãos de cultura grega (sem excluir uma minoria judeo-cristã), como o atestam a língua, o cuidado em explicar a geografia e usos da Palestina, a omissão das discussões judaicas e a consideração que manifesta para com os gentios (louva a fé do centurião em 7,1-10 e exalta a atitude de um samaritano em 10,25-37). |
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− | <nowiki><span style=”color:red”><sup>21</sup></span></nowiki>Entretanto, o povo estava à espera de Zacarias e admirava-se por ele se demorar no santuário. <nowiki><span style=”color:red”><sup>22</sup></span></nowiki>Quando saiu, não era capaz de lhes falar e compreenderam que tinha tido uma visão no santuário. Ele fazia-lhes sinais, e permanecia mudo.
| + | A preocupação é sobretudo reavivar a fé dos crentes (cf. Lc 1,4), que se encontraria em estado de letargia ou até de retrocesso (cf. Lc 18,8), por força da rotina e do retardamento da parusia (última vinda de Jesus, que se cria estar para breve). |
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− | <nowiki><span style=”color:red”><sup>23</sup></span></nowiki>E aconteceu que, quando terminaram os dias<ref name="ftn12">A expressão ''quando terminaram os dias'' é de sabor veterotestamentário. Evoca a realização das profecias (2,6.21.22; 9,51).</ref> do seu serviço litúrgico, voltou para sua casa. <nowiki><span style=”color:red”><sup>24</sup></span></nowiki>Depois destes dias, Isabel, sua mulher, concebeu e manteve-se oculta durante cinco meses, dizendo: <nowiki><span style=”color:red”><sup>25</sup></span></nowiki>«Assim fez o Senhor para comigo nos dias em que pousou o seu olhar, para me livrar da minha desgraça perante os homens».
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| + | '''Linguagem e estilo literário''' |
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− | Anunciação do nascimento de Jesus (Mc 1,9.10; Mt 1,18) – <nowiki><span style=”color:red”><sup>26</sup></span></nowiki>Ao sexto mês<ref name="ftn13">A expressão ''ao sexto mês'' tem como referência a concepção de João. Nazaré é uma pequena povoação da Galileia, nunca referida no AT, e de onde nada se esperava (Jo 1,46).</ref>, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia chamada Nazaré, <nowiki><span style=”color:red”><sup>27</sup></span></nowiki>a uma virgem<ref name="ftn14">O termo grego ''parthénos'' designa uma jovem rapariga. Na cultura judaica, outra coisa não se admitiria que não ser virgem. Maria estava já comprometida com José, mas, segundo o costume judaico, ainda não viviam em comum.</ref> desposada com um homem chamado José<ref name="ftn15">Na cultura hebraica, o noivado tinha lugar um ano antes do casamento, e durante esse período a noiva permanecia com a sua família, sem nenhum contacto mais íntimo com o noivo. Apesar disso, desde o dia em que o noivado se iniciava, os noivos eram já considerados marido e mulher.</ref>, da casa de David. O nome da virgem era Maria.
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− | <nowiki><span style=”color:red”><sup>28</sup></span></nowiki>Entrando onde ela estava<ref name="ftn16">Lit.: ''entrando para ela'' (ou seja, entrando em casa dela, ao seu encontro).</ref>, disse: «Salve, cheia de graça<ref name="ftn17">Lit.: ''agraciada''<nowiki>; mais do que uma saudação, </nowiki>''salve'' sugere a alegria messiânica (Sf 3,14; Zc 9,9) e compagina-se com a temática da alegria tão importante e característica de Lc. Esta expressão ''salve'' (a mesma em Mt 26,49; 27,29; Jo 19,3; Mc 15,18) é uma saudação romana comum e traduz literalmente o imperativo ''khaîre'' (''alegra-te''), cuja raiz partilha a referida etimologia da alegria. O passivo teológico ''cheia de graça'' (Sir 18,17; Ef 1,6) evoca a ação de Deus em Maria, e a expressão ''o Senhor está contigo'' é frequente nos relatos de vocação (cf. Ex 3,12; Jz 6,12; Jr 1,8.19; 15,20).</ref>, o Senhor está contigo!». <nowiki><span </nowiki><nowiki>style=”color:red”><sup>29</sup></span></nowiki>Ela ficou perturbada com estas palavras e pensava que espécie de saudação seria esta. <nowiki><span style=”color:red”><sup>30</sup></span></nowiki>Disse-lhe o anjo: «Não tenhas medo, Maria, pois encontraste graça junto de Deus. <nowiki><span style=”color:red”><sup>31</sup></span></nowiki>Eis que conceberás no ventre e darás à luz um filho, e chamá-lo-ás com o nome Jesus. <nowiki><span style=”color:red”><sup>32</sup></span></nowiki>Ele será grande<ref name="ftn18">''Altíssimo'' é um dos nomes usados pelo helenismo e pelo AT para designar Deus. Também Lc o usa com alguma frequência (Lc 1,35.76; At 7,48; 16,17).</ref>, será chamado Filho do Altíssimo e o Senhor Deus lhe dará o trono de David, seu pai; <nowiki><span style=”color:red”><sup>33</sup></span></nowiki>reinará para sempre sobre a casa de Jacob e o seu reino não terá fim».
| + | Lucas reflete uma grande elevação, sensibilidade, sobriedade e cuidado literários que bem atestam o seu grande talento e delicadeza, assim como a preocupação pela ordem e clareza. A sua linguagem é versátil e o grego que usa é considerado por muitos o melhor dos quatro evangelhos, atingindo, nalguns casos, o nível do melhor grego clássico (cf. Lc 1,1-4). O vocabulário é abundante, cuidado e elegante, ao mesmo tempo que a gramática é rica. |
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− | <nowiki><span style=”color:red”><sup>34</sup></span></nowiki>Maria, porém, disse ao anjo: «Como será isso, uma vez que não conheço<ref name="ftn19">Conhecer tem, neste contexto e como acontece noutras passagens da Escritura (Gn 4,1.17.25; 19,8; 24,16; etc.), o sentido de ter relações conjugais íntimas.</ref> homem?». <nowiki><span style=”color:red”><sup>35</sup></span></nowiki>Respondendo, o anjo disse-lhe: «O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo te envolverá<ref name="ftn20">A expressão ''envolverá'' (lit.: ''estenderá a sombra'') evoca a proteção de Deus (Ex 40,35; Nm 9,18.22; 10,34).</ref>. Por isso, o que é concebido santo será chamado Filho de Deus. <nowiki><span style=”color:red”><sup>36</sup></span></nowiki>E eis que Isabel, tua parente, também ela concebeu um filho na sua velhice e este é o sexto mês para ela, a quem chamavam estéril, <nowiki><span style=”color:red”><sup>37</sup></span></nowiki>porque ''nenhuma palavra que vem de Deus ''é ''impossível''<ref name="ftn21">Ou seja, nada/nenhuma coisa/nenhuma palavra (''rhḗma'') é impossível para Deus. Cf. 18,27; Gn 18,14.</ref>». <nowiki><span style=”color:red”><sup>38</sup></span></nowiki>Maria disse, então: «Eis a serva do Senhor<ref name="ftn22">A expressão ''serva do Senhor'' é lida habitualmente na perspetiva da fé e da humildade (v. 48; 1Sm 25,41), mas também pode evocar a relação esponsal entre Maria e Deus (v. 45, cf. Rt 3,9).</ref>, faça-se em mim segundo a tua palavra!». E o anjo partiu de junto dela.
| + | O evangelista usa recursos literários e estilísticos semitas e helenistas, domina as técnicas da vivacidade literária e as principais figuras de estilo e de organização literária. Neste ponto, destacam-se os paralelismos com que o autor, mesmo comparando, pretende sublinhar a superioridade de Jesus Cristo em relação a qualquer outro personagem (o exemplo mais evidente está no paralelismo entre Jesus e João Batista, Lc 1-2), assim como a dialética ignorância-reconhecimento (com especial mestria no encontro de Jesus com os discípulos de Emaús, Lc 24,13-35). |
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| + | Relevante, ainda, é o facto de Lucas adequar a linguagem à matéria narrada ou a cada um dos personagens, conforme a sua maior ou menor instrução. Tudo isto confere diversidade e plasticidade à narrativa. Não admira, por isso, que celebrações litúrgicas de grande relevo, como o Natal, a Ascensão de Jesus ou o Pentecostes, se apoiem em textos deste autor. |
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− | Maria visita Isabel e glorifica o Senhor – <nowiki><span style=”color:red”><sup>39</sup></span></nowiki>Por aqueles dias, Maria levantou-se, foi apressadamente para a montanha, para uma cidade<ref name="ftn23">A cidade de Judá aqui referida será ''Ein-Karim'', seis quilómetros a oeste de Jerusalém.</ref> de Judá, <nowiki><span style=”color:red”><sup>40</sup></span></nowiki>entrou na casa de Zacarias e saudou Isabel. <nowiki><span style=”color:red”><sup>41</sup></span></nowiki>E aconteceu que, quando Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança saltou no seu ventre e Isabel ficou cheia do Espírito Santo. <nowiki><span style=”color:red”><sup>42</sup></span></nowiki>Levantando, então, a voz com um forte brado, disse: «Bendita és tu entre as mulheres, e bendito o fruto do teu ventre! <nowiki><span style=”color:red”><sup>43</sup></span></nowiki>De onde me é dado que venha ter comigo a mãe do meu Senhor? <nowiki><span style=”color:red”><sup>44</sup></span></nowiki>Eis que, quando chegou a voz da tua saudação aos meus ouvidos, a criança saltou de júbilo no meu ventre. <nowiki><span style=”color:red”><sup>45</sup></span></nowiki>Feliz aquela que acreditou, porque se consumará o que lhe foi dito da parte do Senhor!».
| + | Todas estas caraterísticas estilísticas e literárias permitem concluir que o autor só pode ser de língua e cultura gregas. |
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− | <nowiki><span style=”color:red”><sup>46</sup></span></nowiki>Maria disse, então<ref name="ftn24">O cântico de Maria (''Magnificat'') é uma oração em forma de hino que se inspira no de Ana (1Sm 2,1-10) e em diversos salmos (Sl 72,19; 100,5; 103,17; 111,9). A expressão ''a força do seu braço ''e o verbo ''recordar'' (Gn 8,1; 9,15; Is 2,24) referem a intervenção divina que torna manifesta a misericórdia e a proteção de Deus.</ref>:
| + | '''Estrutura literária''' |
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− | <nowiki><span style=”color:red”><sup>47</sup></span></nowiki>«''A minha alma engrandece o Senhor''
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− | e o meu espírito ''exultou em Deus, meu Salvador'', | + | Do ponto de vista da organização literária, a novidade maior prende-se com o prólogo (1,1-4), pois é o único evangelho a começar deste modo, e a forma como estrutura a ''secção do caminho''<nowiki> (9,51 – 19,27[28]). Além disso, aparece bem vincada a </nowiki>''narrativa da infância'' (Lc 1-2), assim como a paixão, morte e ressurreição de Jesus (Lc 23-24). Com base nestas constatações, apresentamos o esquema ou estrutura literária que se segue, a partir da dinâmica salvífica que o habita e da progressão geográfica que o enforma (os tempos e os lugares da história da salvação): |
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− | <nowiki><span style=”color:red”><sup>48</sup></span></nowiki>porque ''pôs o olhar na humildade da sua serva''.
| + | ''Prólogo'' (1,1-4). Assinala-se o sujeito, o método e a finalidade da obra. |
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− | Eis que, a partir de agora, me chamarão feliz todas as gerações,
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− | <nowiki><span style=”color:red”><sup>49</sup></span></nowiki>porque o Poderoso fez em mim grandes coisas.
| + | I. ''O Salvador entra na história'' (1,5-2,52, conhecido por ''narrativa da infância''), com uma síntese introdutória da condição messiânica de Jesus, em que a luz do Ressuscitado já ilumina a manjedoura de Belém, um verdadeiro prólogo cristológico (cf. Jo 1,1-18). |
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− | Santo é o seu Nome
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− | <nowiki><span style=”color:red”><sup>50</sup></span></nowiki>e a sua misericórdia estende-se de
| + | II. ''O prelúdio da missão salvífica de Jesus'' (3,1-4,13). João Batista é, para Lucas, o último grande profeta, um anunciador da conversão (3,3.8). O batismo, a genealogia e as tentações de Jesus (3,21 – 4,13) investem e credibilizam Jesus e apresentam a preparação da sua missão salvífica. |
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− | geração em geração para os que o temem.
| + | III. ''Jesus inicia a sua pregação na Galileia'' (4,14 – 9,50). Após o discurso programático na sinagoga de Nazaré (4,14-30), o evangelho apresenta diversos ensinamentos e milagres de Jesus, divididos em três partes: 4,31 – 6,11; 6,12 – 7,50; 8,1 – 9,50). |
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− | <nowiki><span style=”color:red”><sup>51</sup></span></nowiki>Mostrou a força do seu braço
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− | e dispersou os soberbos no pensamento dos seus corações<ref name="ftn25">Lit.: ''fez força com o seu braço / e dispersou os soberbos na mente do coração deles''.</ref><nowiki>;</nowiki>
| + | IV. ''O caminho de Jesus para Jerusalém'' (9,51-19,28). Moldura literária e teológica, é a parte mais original do Terceiro Evangelho. Tudo quanto se passa a caminho de Jerusalém manifesta uma salvação em ato e, por isso, o advérbio de tempo ''hoje'' (9,23; 12,28; 13,32.33; 19,5) reveste-se de uma grande importância e força expressiva. Esta unidade pode subdividir-se em três partes, começando cada uma delas do mesmo modo (cf. 9,51; 13,22; 17,11) e todas terminando com, pelo menos, uma parábola (cf. 13,18-21; 17,7-10; 19,11-28): |
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− | <nowiki><span style=”color:red”><sup>52</sup></span></nowiki>derrubou os poderosos dos tronos,
| + | :– promessa do reino (9,51 – 13,21); |
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− | e exaltou os humildes;
| + | :– condições para entrar no reino (13,22 – 17,10); |
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− | <nowiki><span style=”color:red”><sup>53</sup></span></nowiki>aos famintos encheu de bens
| + | :– entrada no reino (17,11 – 19,27). |
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− | e aos ricos despediu sem nada<ref name="ftn26">Lit.: ''despediu vazios''.</ref><nowiki>;</nowiki>
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− | <nowiki><span style=”color:red”><sup>54</sup></span></nowiki>socorreu Israel, seu servo,
| + | V. ''A realização salvífica em Jerusalém'' (19,29 – 24,53). A entrada e o magistério de Jesus, em Jerusalém (19,29 – 21,38), preparam o relato da sua paixão, morte e ressurreição (22-23; 24). Jesus morto e ressuscitado é a realização e superação de todas as promessas messiânicas e a luz que ilumina todos os acontecimentos do evangelho. |
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− | recordando-se da misericórdia,
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− | <nowiki><span style=”color:red”><sup>55</sup></span></nowiki>como afirmou aos nossos pais,
| + | '''Aspetos teológicos''' |
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− | a Abraão e à sua descendência para sempre».
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− | <nowiki><span style=”color:red”><sup>56</sup></span></nowiki>Maria permaneceu com ela cerca de três meses e voltou para sua casa.
| + | É verdade que, no prólogo, Lucas se apresenta como um historiador que, sem deixar de o ser, é sobretudo um teólogo que procura descobrir o sentido mais profundo dos acontecimentos, tendo em vista a compreensão e fundamentação da fé. |
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| + | São muitos os seus temas teológicos: alegria, caminho, comensalidade, solidariedade, oração, misericórdia e perdão (Dante Alighieri chama-lhe ''scriba mansuetudinis Christi'', o ''escriba da mansidão de Cristo''), primazia do Espírito, entre outros. Todos eles se inscrevem na dinâmica da história da salvação, de que Lucas é o evangelista por excelência. |
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− | Nascimento de João Batista – <nowiki><span style=”color:red”><sup>57</sup></span></nowiki>Cumpriu-se, então, o tempo de Isabel dar à luz, e teve um filho. <nowiki><span style=”color:red”><sup>58</sup></span></nowiki>Os seus vizinhos e parentes ouviram que o Senhor engrandecera a sua misericórdia para com ela e alegraram-se com ela.
| + | A salvação aparece centralizada em Jerusalém; começou em Israel (AT), atingiu a sua plenitude em Jesus Cristo (Evangelho de Lucas) e continua a expandir-se na e pela Igreja (Atos dos Apóstolos). A salvação acontece no quotidiano, destina-se a todos, mas preferencialmente aos pobres, doentes, excluídos, pecadores, mulheres, crianças, etc. Excluídos da sociedade e das suas prerrogativas, são por Jesus Cristo incluídos no processo salvífico, dado que a salvação é para todos e Jesus Cristo afirma-se como o salvador universal. A salvação obedece, assim, a quatro procedimentos essenciais: |
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− | <nowiki><span style=”color:red”><sup>59</sup></span></nowiki>E aconteceu que, ao oitavo dia<ref name="ftn27">O oitavo dia era a data legal da circuncisão (Gn 17,12; Lv 12,3) e, no judaísmo mais recente, o momento em que se dava o nome à criança. Se, no AT, quer a mãe quer o pai podiam dar o nome, neste caso, o pai confirma o nome dado pela mãe, em virtude da revelação do anjo (v. 13).</ref>, foram circuncidar o menino e chamavam-no com o nome de seu pai, Zacarias; <nowiki><span style=”color:red”><sup>60</sup></span></nowiki>mas a mãe, em resposta, disse: «Não. Será chamado João!». <nowiki><span style=”color:red”><sup>61</sup></span></nowiki>Disseram-lhe: «Não há ninguém da tua família que seja chamado com esse nome». <nowiki><span style=”color:red”><sup>62</sup></span></nowiki>Perguntavam, então, por sinais ao pai dele como queria que se chamasse. <nowiki><span style=”color:red”><sup>63</sup></span></nowiki>Pedindo uma tábua, escreveu, dizendo: «João é o seu nome». Todos se admiraram. <nowiki><span style=”color:red”><sup>64</sup></span></nowiki>A sua boca abriu-se subitamente, a sua língua desatou-se<ref name="ftn28">Lit.: ''e a sua língua''.</ref>, e falava bendizendo a Deus.
| + | :– ''Escuta da Palavra''. Maria, mãe de Jesus (1,26-38), e Maria, irmã de Marta e Lázaro (10,38-42), são propostas como modelos de escuta; |
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− | <nowiki><span style=”color:red”><sup>65</sup></span></nowiki>E sobreveio um temor sobre todos os seus vizinhos, e em toda a região da Judeia divulgavam-se todas estas coisas. <nowiki><span style=”color:red”><sup>66</sup></span></nowiki>E todos os que ouviam gravavam-nas em seu coração<ref name="ftn29">O coração é, na Escritura, a sede de toda a vida do ser humano, nas suas diversas dimensões (2,19.35.51; 21,14; Pr 23,26; Sir 17,6; Jl 2,12; Mc 7,15).</ref>, dizendo: «O que irá ser este menino?». De facto, a mão do Senhor estava com ele.
| + | :– ''Desapego dos bens terrenos'', em ordem a seguir Jesus (14,33); |
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| + | :– ''Oração insistente'', atitude de Jesus a que Lucas dá um especial relevo (3,21; 6,12; 9,18.28-29); |
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− | Cântico de Zacarias – <nowiki><span style=”color:red”><sup>67</sup></span></nowiki>Zacarias, seu pai, ficou cheio do Espírito Santo e profetizou, dizendo<ref name="ftn30">O cântico de Zacarias (''Benedictus'') é semelhante ao de Maria (1,46-55). O tema da visita de Deus aponta, no AT, para o cuidado com que Deus acompanha o seu povo (Gn 21,1; 50,24-25; Ex 3,16; Sl 65,10; 80,15; 106,4; Jr 29,10) e até para o castigo divino (Ex 32,34; Sl 59,6; 89,33; Is 10,12; Ez 23,32; 34,17-20).</ref>:
| + | :''– Demanda ou consciência da cruz e da glória''. O evangelho está repleto de viagens e verbos de movimento que ajudam a perceber que o caminho para a glória da ressurreição exige a passagem pela cruz, como acontece com Jesus Cristo. Exemplo possível e eloquente é o texto dos discípulos de Emaús, no qual Jesus pergunta: ''Não era necessário que o Cristo sofresse estas coisas, para entrar na sua glória?'' (24,26). |
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− | <nowiki><span style=”color:red”><sup>68</sup></span></nowiki>«''Bendito o Senhor, Deus de Israel'',
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− | porque visitou e redimiu o seu povo,
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− | <nowiki><span style=”color:red”><sup>69</sup></span></nowiki>e nos suscitou uma força de salvação<ref name="ftn31">Lit.: ''um corno de salvação''. O corno era, na cultura de Israel, o símbolo da força (1Sm 2,10; Sl 89,25; 132,17).</ref>
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− | na casa de David, seu servo –
| + | <references/> |
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− | <nowiki><span style=”color:red”><sup>70</sup></span></nowiki>como afirmou desde sempre
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− | pela boca dos seus santos profetas –
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− | <nowiki><span style=”color:red”><sup>71</sup></span></nowiki>salvação dos nossos inimigos
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− | e da mão de todos os que nos odeiam,
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− | <nowiki><span style=”color:red”><sup>72</sup></span></nowiki>para usar de misericórdia com os nossos pais
| + | == Capítulos == |
− | | + | [[Lc_1|Lc 1]] [[Lc_2|Lc 2]] [[Lc_3|Lc 3]] [[Lc_4|Lc 4]] [[Lc_5|Lc 5]] [[Lc_6|Lc 6]] [[Lc_7|Lc 7]] [[Lc_8|Lc 8]] [[Lc_9|Lc 9]] [[Lc_10|Lc 10]] [[Lc_11|Lc 11]] [[Lc_12|Lc 12]] [[Lc_13|Lc 13]] [[Lc_14|Lc 14]] [[Lc_15|Lc 15]] [[Lc_16|Lc 16]] [[Lc_17|Lc 17]] [[Lc_18|Lc 18]] [[Lc_19|Lc 19]] [[Lc_20|Lc 20]] [[Lc_21|Lc 21]] [[Lc_22|Lc 22]] [[Lc_23|Lc 23]] [[Lc_24|Lc 24]] |
− | e recordar-se da sua santa aliança,
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− | <nowiki><span style=”color:red”><sup>73</sup></span></nowiki>do juramento que fizera a Abraão, nosso pai, de nos conceder que,
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− | <nowiki><span style=”color:red”><sup>74</sup></span></nowiki>sem medo, libertos das mãos
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− | dos nossos inimigos, o sirvamos
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− | <nowiki><span style=”color:red”><sup>75</sup></span></nowiki>em santidade e justiça, diante dele,
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− | todos os nossos dias.
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− | <nowiki><span style=”color:red”><sup>76</sup></span></nowiki>E tu, menino, serás chamado profeta do Altíssimo,
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− | pois irás à frente ''do Senhor para preparar os seus caminhos''<ref name="ftn32">Para a missão de João, cf. 3,3.</ref>,
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− | <nowiki><span style=”color:red”><sup>77</sup></span></nowiki>para dar a conhecer a salvação ao seu povo
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− | no perdão dos seus pecados,
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− | <nowiki><span style=”color:red”><sup>78</sup></span></nowiki>graças às entranhas de misericórdia do nosso Deus<ref name="ftn33">''Entranhas de misericórdia'' é uma expressão muito usada pelo AT para referir a bondade de Deus (Sl 79,8; 119,77; 145,9; Is 54,7; 63,7.15; Jr 31,20; Zc 1,16).</ref>,
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− | com as quais nos visitará o sol que nasce das alturas,
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− | <nowiki><span style=”color:red”><sup>79</sup></span></nowiki>''para iluminar os que jazem nas trevas e na sombra da morte''
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− | e guiar os nossos pés para um caminho de paz»<ref name="ftn34">A paz é o dom messiânico por excelência (Is 9,5s; Mq 5,4).</ref>.
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− | <nowiki><span style=”color:red”><sup>80</sup></span></nowiki>Entretanto, o menino crescia e fortificava-se no espírito. E esteve nas regiões desertas até ao dia da sua manifestação a Israel.
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INTRODUÇÃO
O evangelho de Lucas é o terceiro, na ordem canónica, e o primeiro, na extensão em número de versículos. Tem a sua continuidade no livro dos Atos dos Apóstolos, com o qual constitui uma unidade literária e temática, à boa maneira da historiografia da época. As duas partes começam de modo semelhante (cf. Lc 1,1-4 e At 1,1-3), apresentam muitas palavras, expressões e temas comuns (por exemplo, a conclusão de Lc 24,44-52 é retomada em At 1,4-11), o que nos permite falar de uma certa homogeneidade de linguagem, temática e pensamento.
Autor, data, lugar e destinatários
Tendo em conta os dados do próprio texto e as informações do séc. II de Ireneu de Lião (Adv.Haer. III,1.1), é de crer que o autor seja mesmo Lucas, o caríssimo médico (Cl 4,14), discípulo de Paulo, um cristão da segunda geração (70-100), que não foi testemunha ocular de Jesus (cf. Lc 1,1-4).
Este evangelho foi provavelmente escrito pela década de 80, talvez em Antioquia da Síria. Para a sua composição, o autor apoiou-se no Evangelho segundo S. Marcos e na hipotética Quelle (fonte de ditos de Jesus, usada também por Mateus), assim como em fontes próprias da tradição escrita e oral (cf. 1-2; 7,1-17; 7,36-50; 10,29-37; 15,11-32; 19,1-10; 24,13-35), trabalhando-as no que respeita à ordem, ao vocabulário e ao estilo.
Tudo leva a crer que tenha sido destinado a cristãos de cultura grega (sem excluir uma minoria judeo-cristã), como o atestam a língua, o cuidado em explicar a geografia e usos da Palestina, a omissão das discussões judaicas e a consideração que manifesta para com os gentios (louva a fé do centurião em 7,1-10 e exalta a atitude de um samaritano em 10,25-37).
A preocupação é sobretudo reavivar a fé dos crentes (cf. Lc 1,4), que se encontraria em estado de letargia ou até de retrocesso (cf. Lc 18,8), por força da rotina e do retardamento da parusia (última vinda de Jesus, que se cria estar para breve).
Linguagem e estilo literário
Lucas reflete uma grande elevação, sensibilidade, sobriedade e cuidado literários que bem atestam o seu grande talento e delicadeza, assim como a preocupação pela ordem e clareza. A sua linguagem é versátil e o grego que usa é considerado por muitos o melhor dos quatro evangelhos, atingindo, nalguns casos, o nível do melhor grego clássico (cf. Lc 1,1-4). O vocabulário é abundante, cuidado e elegante, ao mesmo tempo que a gramática é rica.
O evangelista usa recursos literários e estilísticos semitas e helenistas, domina as técnicas da vivacidade literária e as principais figuras de estilo e de organização literária. Neste ponto, destacam-se os paralelismos com que o autor, mesmo comparando, pretende sublinhar a superioridade de Jesus Cristo em relação a qualquer outro personagem (o exemplo mais evidente está no paralelismo entre Jesus e João Batista, Lc 1-2), assim como a dialética ignorância-reconhecimento (com especial mestria no encontro de Jesus com os discípulos de Emaús, Lc 24,13-35).
Relevante, ainda, é o facto de Lucas adequar a linguagem à matéria narrada ou a cada um dos personagens, conforme a sua maior ou menor instrução. Tudo isto confere diversidade e plasticidade à narrativa. Não admira, por isso, que celebrações litúrgicas de grande relevo, como o Natal, a Ascensão de Jesus ou o Pentecostes, se apoiem em textos deste autor.
Todas estas caraterísticas estilísticas e literárias permitem concluir que o autor só pode ser de língua e cultura gregas.
Estrutura literária
Do ponto de vista da organização literária, a novidade maior prende-se com o prólogo (1,1-4), pois é o único evangelho a começar deste modo, e a forma como estrutura a secção do caminho (9,51 – 19,27[28]). Além disso, aparece bem vincada a narrativa da infância (Lc 1-2), assim como a paixão, morte e ressurreição de Jesus (Lc 23-24). Com base nestas constatações, apresentamos o esquema ou estrutura literária que se segue, a partir da dinâmica salvífica que o habita e da progressão geográfica que o enforma (os tempos e os lugares da história da salvação):
Prólogo (1,1-4). Assinala-se o sujeito, o método e a finalidade da obra.
I. O Salvador entra na história (1,5-2,52, conhecido por narrativa da infância), com uma síntese introdutória da condição messiânica de Jesus, em que a luz do Ressuscitado já ilumina a manjedoura de Belém, um verdadeiro prólogo cristológico (cf. Jo 1,1-18).
II. O prelúdio da missão salvífica de Jesus (3,1-4,13). João Batista é, para Lucas, o último grande profeta, um anunciador da conversão (3,3.8). O batismo, a genealogia e as tentações de Jesus (3,21 – 4,13) investem e credibilizam Jesus e apresentam a preparação da sua missão salvífica.
III. Jesus inicia a sua pregação na Galileia (4,14 – 9,50). Após o discurso programático na sinagoga de Nazaré (4,14-30), o evangelho apresenta diversos ensinamentos e milagres de Jesus, divididos em três partes: 4,31 – 6,11; 6,12 – 7,50; 8,1 – 9,50).
IV. O caminho de Jesus para Jerusalém (9,51-19,28). Moldura literária e teológica, é a parte mais original do Terceiro Evangelho. Tudo quanto se passa a caminho de Jerusalém manifesta uma salvação em ato e, por isso, o advérbio de tempo hoje (9,23; 12,28; 13,32.33; 19,5) reveste-se de uma grande importância e força expressiva. Esta unidade pode subdividir-se em três partes, começando cada uma delas do mesmo modo (cf. 9,51; 13,22; 17,11) e todas terminando com, pelo menos, uma parábola (cf. 13,18-21; 17,7-10; 19,11-28):
- – promessa do reino (9,51 – 13,21);
- – condições para entrar no reino (13,22 – 17,10);
- – entrada no reino (17,11 – 19,27).
V. A realização salvífica em Jerusalém (19,29 – 24,53). A entrada e o magistério de Jesus, em Jerusalém (19,29 – 21,38), preparam o relato da sua paixão, morte e ressurreição (22-23; 24). Jesus morto e ressuscitado é a realização e superação de todas as promessas messiânicas e a luz que ilumina todos os acontecimentos do evangelho.
Aspetos teológicos
É verdade que, no prólogo, Lucas se apresenta como um historiador que, sem deixar de o ser, é sobretudo um teólogo que procura descobrir o sentido mais profundo dos acontecimentos, tendo em vista a compreensão e fundamentação da fé.
São muitos os seus temas teológicos: alegria, caminho, comensalidade, solidariedade, oração, misericórdia e perdão (Dante Alighieri chama-lhe scriba mansuetudinis Christi, o escriba da mansidão de Cristo), primazia do Espírito, entre outros. Todos eles se inscrevem na dinâmica da história da salvação, de que Lucas é o evangelista por excelência.
A salvação aparece centralizada em Jerusalém; começou em Israel (AT), atingiu a sua plenitude em Jesus Cristo (Evangelho de Lucas) e continua a expandir-se na e pela Igreja (Atos dos Apóstolos). A salvação acontece no quotidiano, destina-se a todos, mas preferencialmente aos pobres, doentes, excluídos, pecadores, mulheres, crianças, etc. Excluídos da sociedade e das suas prerrogativas, são por Jesus Cristo incluídos no processo salvífico, dado que a salvação é para todos e Jesus Cristo afirma-se como o salvador universal. A salvação obedece, assim, a quatro procedimentos essenciais:
- – Escuta da Palavra. Maria, mãe de Jesus (1,26-38), e Maria, irmã de Marta e Lázaro (10,38-42), são propostas como modelos de escuta;
- – Desapego dos bens terrenos, em ordem a seguir Jesus (14,33);
- – Oração insistente, atitude de Jesus a que Lucas dá um especial relevo (3,21; 6,12; 9,18.28-29);
- – Demanda ou consciência da cruz e da glória. O evangelho está repleto de viagens e verbos de movimento que ajudam a perceber que o caminho para a glória da ressurreição exige a passagem pela cruz, como acontece com Jesus Cristo. Exemplo possível e eloquente é o texto dos discípulos de Emaús, no qual Jesus pergunta: Não era necessário que o Cristo sofresse estas coisas, para entrar na sua glória? (24,26).
Capítulos
Lc 1 Lc 2 Lc 3 Lc 4 Lc 5 Lc 6 Lc 7 Lc 8 Lc 9 Lc 10 Lc 11 Lc 12 Lc 13 Lc 14 Lc 15 Lc 16 Lc 17 Lc 18 Lc 19 Lc 20 Lc 21 Lc 22 Lc 23 Lc 24